terça-feira, 15 de julho de 2014

Inimigo meu

Como geek assumido e fã de ficção científica, nesses últimos dias de Copa do Mundo lembrei muito do filme de 1985 intitulado Inimigo meu. Só para recordar, o filme conta a história de um piloto terráqueo e um outro, pertencente a uma raça reptiliana chamada drac, que caem em um planeta inóspito, cheio de armadilhas mortais. Terráqueos e dracs são inimigos jurados, envolvidos em uma guerra inacabável, mas diante das circunstâncias, após o previsível confronto inicial, os antagonistas são obrigados a juntar forças em nome da sobrevivência.

Ao longo do filme, o drac mostra-se inteligente o suficiente para aprender rapidamente o inglês do adversário e, logo, ensinar-lhe sua língua. Vencida, por fim, a barreira linguística, terráqueo e drac começam a aprender um sobre o outro, suas respectivas filosofias de vida, seus pensares, sonhos e sentimentos. Pasmos, percebem que, apesar de estarem "vestidos" com corpos tão díspares, suas almas têm semelhanças indiscutíveis: ambos amam, sofrem e são capazes de verdadeiros sacrifícios por aquilo em que acreditam.

Ainda que os argentinos não tenham escamas, fiquei pensando que eles são os nossos dracs (tanto quanto nós somos os dracs deles). Por que brasileiros e argentinos parecem não se entender?

Isso vem de longe, claro. Nós herdamos essa rixa boba desde antes do Tratado de Tordesilhas. Por aqui, tomamos as dores dos portugueses, por lá, dos espanhóis. Ainda somos os mesmos colonizados de ontem. Ao longo da História, o Brasil sempre se opôs e minou qualquer iniciativa argentina de se elevar como liderança regional. Quando o projeto da Hidrelétrica de Itaipu iniciou, uma parceria brasileira com o governo paraguaio, a campanha contrária argentina foi ferrenha. Chegaram a inventar filmes de terror, com Buenos Aires sendo inundada para que o Brasil tivesse energia elétrica. O único momento em que Brasil e Argentina se entenderam foi quando se uniram ao Uruguai para massacrar a ascendente economia paraguaia, durante a Guerra da Tríplice Aliança.

Passados os temporais, Brasil e Argentina, hoje, são aliados incertos no Mercosul. Nem sempre as relações entre os dois países são as melhores, mas ambos vão levando da melhor maneira possível.

Essa rixa histórica de governos acabou contaminando o povo. Fiquei chocado com algumas manifestações realmente violentas contra os argentinos na mídia e nas redes sociais. Os próprios meios de comunicação brasileiros parece que faziam questão de ressaltar a rivalidade e, mais que isso, estimulá-la. Do lado de lá da fronteira, a coisa não foi diferente. Até fotos de argentinos sorridentes queimando a bandeira brasileira, quando da derrota histórica para a Alemanha, circularam por aí.

Mas quem tem razão? Brasileiros ou argentinos? Ora, isso é óbvio: nenhum de nós!

Na final da Copa, torci alucinadamente pela Argentina. Como gaúcho acostumado a cruzar fronteiras, professor de espanhol, amigo de vários argentinos e brasileiro magoado por ter tomado sete gols da máquina germânica, não vejo como poderia ser diferente. Ok, meu sobrenome materno é Liessem (parece que tem algo a ver com uma cidadezinha minúscula na fronteira da Alemanha com Luxemburgo, Ließem), mas meu vínculo com a terra de Goethe (por quem sou apaixonado) acaba por aí. Fiquei entre decepcionado e confuso, entretanto, com as críticas (às vezes veladas) e os deboches que sofri pela minha escolha. O mais triste foi ver alguns professores (formados e em formação) de língua espanhola expressando desprezo, quando não ódio pelos argentinos, como se "argentinos" fosse o nome dado a uma entidade única e uniforme, uma criatura maligna e peçonhenta capaz das maiores vilezas. Esses professores são profissionais que mais que trabalhar com língua precisam trabalhar com cultura, com percepção e aceitação da diferença... mas parece que o discurso de que para aprender a língua é preciso compreender a cultura, para alguns, é só isso: discurso.

Tudo bem, não vou com a cara do Maradona. Mas acho o Papa Chico um baita cara! Amo Soledad Pastorutti, sou fã da dupla oscarizada Darín/Campanella, me emociono com Alfonsina Storni e enxergo Jorge Luís Borges como um deus literário. Em síntese, tenho mais motivos para amar do que para odiar a Argentina e os argentinos. Se há hermanos de mau caráter, também existem brasileiros assim. Aí está nossa política para provar o ponto de vista. Mas prefiro ficar com o testemunho de um jovem argentino que estava sendo "zoado" na rua por brasileiros enquanto concedia uma entrevista: "Gracias, Brasil! Me han recibido muy bien acá! Los quiero a todos!"

Se os argentinos são nossos dracs e vice-versa, está na hora de começarmos a olhar para além das aparências.