sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Feliz eu novo!

O guri de cabelo arrepiado caminha ao lado da amiguinha de fitinha no cabelo. Estão comentando sobre o Natal e o período de festas. Em meio à conversa, ele reproduz o que tem ouvido por todo lado: As pessoas esperam que o ano que está começando seja melhor que o anterior! A guria, muito séria, para na frente do amigo e olha nos seus olhos: Aposto que o ano que está começando espera que as pessoas é que sejam melhores!

Gênio essa guria, não? Na verdade, ela não existe. É criação da mente do fantástico cartunista argentino Quino. Seu nome é Mafalda e por muitos anos foi porta-voz do seu criador em reflexões a respeito de temas como política, religião, mídia, relações familiares, costumes e muitos outros.

Reli a tira há poucos dias, por ocasião da proximidade das festas de fim de ano. Alguém a postou em uma rede social. Bom, geralmente a gente tenta fazer com que o ano seja melhor pulando sete ondas, comendo lentilha ou vestindo uma cueca amarela (ou vermelha ou branca, depende do objetivo). Mas como, afinal, podemos fazer com que nós mesmos sejamos melhores?

Há uma frase atribuída a Einstein que diz assim: Insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes. Talvez parte do segredo esteja aí. Se todos os anos fazemos as mesmas coisas e da mesma forma, fica difícil que algo mude. Como eu sempre digo para meus alunos, não se aprende espanhol por intervenção divina: é preciso exercício, esforço, dedicação. Sorte não é mais que um feliz encontro entre oportunidade e preparação. Se a chance surge e não estamos preparados, não podemos aproveitar o que se nos apresenta.

Enfim, para que algo mude na nossa vida, temos que mudar nós mesmos e toda mudança, para melhor ou para pior, é uma questão de escolha. Vem-me à memoria uma história que conta a monja budista Pema Chödrön sobre um velho sábio indígena da América do Norte que conversava com seu neto sobre o bem e o mal no mundo. Dizia ele que dentro do homem há dois lobos eternamente em luta. Um é cruel e sanguinário, o outro, gentil e justo.  Quem vence?, pergunta o netinho. Vence aquele que eu escolher alimentar, responde o avô.

Acho que minha ideia para essa entrada de ano se resume a isso. Podemos ter um mundo melhor, mas se eu quero isso de verdade, não posso ficar esperando que o governo mude, que o chefe mude, que o colega mude, que o vizinho mude. Tenho que mudar eu! Tenho que ser o melhor que eu posso ser. Estamos no mundo para sermos felizes, mas para isso, precisamos fazer felizes aos outros em primeiro lugar.

Feliz 2014! Feliz eu novo!

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

A gente é gente!

O guri acordou cedinho para ir à aula. Não queria estar ali. A aula é chata e o professor o tirou para Cristo... ou para Judas em dia de malhação. Parece que tudo que acontece na sala de aula é culpa sua. Mas tudo bem... pior é ficar em casa vendo o pai se acabar na bebida e bater na mãe. Além do mais, se não vai à escola, não come. A merenda da escola é a única comida decente que tem o dia todo. O jeito é aturar.

Cansado de ser o saco de pancadas, resolveu fazer a lição. Preenche a lacuna com o verbo correto. Preenche um, preenche dois... bolinha de papel na cabeça. O guri não é flor que se cheire, está certo. Aprendeu com o pai. Tem que bater para não apanhar. Olha na volta e não enxerga de onde veio a bolinha. Preenche três, preenche quatro... outra! Desta vez, o quadrante da sala de onde veio a agressão pisca como num videogame. Foi dali! Preenche cinco, preenche seis... terceira bolinha, agressor localizado... Se tocar outra eu vou aí! O colega faz uma careta. Eu vou aí!

O professor, finalmente, parece acordar da sua letargia. Que está acontecendo, guri? Ele está me jogando bolinha de papel. Está mesmo, fulano? NADA A VER, PROFE, ESTOU QUIETO AQUI. O professor olha para o guri. Preto, pobre, com histórico de brigas e várias visitas à coordenação pedagógica. O professor olha para o outro. Loirinho, filho do dono da farmácia do bairro. Meio encapetado, está certo, mas é normal na idade dele, não? Guri, vai fazer teu exercício; fica de castigo no recreio para aprender a não mentir.

O professor volta para sua mesa. O guri, cabeça baixa, fica repetindo seu mantra: Eu odeio este lugar! Eu odeio este lugar!

Ok, talvez eu tenha exagerado um pouco nos matizes, mas só um pouco. Esta história é baseada num caso real e foi contada a mim por um aluno da universidade que está em estágio. Ele foi testemunha do caso e compartilhou comigo e com seus colegas numa disciplina em que estamos discutindo a importância de uma educação menos centrada na produção e mais voltada para o ser humano. O caso é triste, mas é mais comum do que podemos imaginar.

Há alguns anos, quando cheguei para trabalhar numa escola municipal de Pelotas, a primeira coisa que meus colegas me disseram foi para tomar cuidado com certo aluno "especialmente problemático". Até armado ele já entrou na escola, me disseram. Era uma turma grande de sétima série. Entrei na sala e logo identifiquei o rapaz. Calado e com cara de poucos amigos. Boné enfiado na testa. Conversei com a turma, propus minha dinâmica para o ano, aparamos umas arestas e fiz uma brincadeira para que eles se apresentassem em espanhol. O rapaz não quis brincar. Aproximei-me, toquei seu ombro e disse que tudo bem, ele não estava obrigado, mas podia pelo menos me dizer seu nome em português? Ele me olhou meio espantado e disse. Acho que nenhum professor tinha tocado no seu ombro antes. Na aula seguinte, quando propus uma atividade, ele foi o primeiro a se voluntariar para ir ao quadro. Gostou! Ganhei o garoto, que se tornou um dos meus mais empolgados estudantes, ainda que outros professores continuassem a falar mal dele.

Às vezes, a gente só tem que perceber que aquela criatura ali na sala de aula não é um aluno. É gente. E gente tem história, gente sofre, gente chora... mas gente também ri e ama. E se ri e ama, às vezes um toque no ombro é tudo o que se precisa para se chegar ao seu coração.