segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

A gente é gente!

O guri acordou cedinho para ir à aula. Não queria estar ali. A aula é chata e o professor o tirou para Cristo... ou para Judas em dia de malhação. Parece que tudo que acontece na sala de aula é culpa sua. Mas tudo bem... pior é ficar em casa vendo o pai se acabar na bebida e bater na mãe. Além do mais, se não vai à escola, não come. A merenda da escola é a única comida decente que tem o dia todo. O jeito é aturar.

Cansado de ser o saco de pancadas, resolveu fazer a lição. Preenche a lacuna com o verbo correto. Preenche um, preenche dois... bolinha de papel na cabeça. O guri não é flor que se cheire, está certo. Aprendeu com o pai. Tem que bater para não apanhar. Olha na volta e não enxerga de onde veio a bolinha. Preenche três, preenche quatro... outra! Desta vez, o quadrante da sala de onde veio a agressão pisca como num videogame. Foi dali! Preenche cinco, preenche seis... terceira bolinha, agressor localizado... Se tocar outra eu vou aí! O colega faz uma careta. Eu vou aí!

O professor, finalmente, parece acordar da sua letargia. Que está acontecendo, guri? Ele está me jogando bolinha de papel. Está mesmo, fulano? NADA A VER, PROFE, ESTOU QUIETO AQUI. O professor olha para o guri. Preto, pobre, com histórico de brigas e várias visitas à coordenação pedagógica. O professor olha para o outro. Loirinho, filho do dono da farmácia do bairro. Meio encapetado, está certo, mas é normal na idade dele, não? Guri, vai fazer teu exercício; fica de castigo no recreio para aprender a não mentir.

O professor volta para sua mesa. O guri, cabeça baixa, fica repetindo seu mantra: Eu odeio este lugar! Eu odeio este lugar!

Ok, talvez eu tenha exagerado um pouco nos matizes, mas só um pouco. Esta história é baseada num caso real e foi contada a mim por um aluno da universidade que está em estágio. Ele foi testemunha do caso e compartilhou comigo e com seus colegas numa disciplina em que estamos discutindo a importância de uma educação menos centrada na produção e mais voltada para o ser humano. O caso é triste, mas é mais comum do que podemos imaginar.

Há alguns anos, quando cheguei para trabalhar numa escola municipal de Pelotas, a primeira coisa que meus colegas me disseram foi para tomar cuidado com certo aluno "especialmente problemático". Até armado ele já entrou na escola, me disseram. Era uma turma grande de sétima série. Entrei na sala e logo identifiquei o rapaz. Calado e com cara de poucos amigos. Boné enfiado na testa. Conversei com a turma, propus minha dinâmica para o ano, aparamos umas arestas e fiz uma brincadeira para que eles se apresentassem em espanhol. O rapaz não quis brincar. Aproximei-me, toquei seu ombro e disse que tudo bem, ele não estava obrigado, mas podia pelo menos me dizer seu nome em português? Ele me olhou meio espantado e disse. Acho que nenhum professor tinha tocado no seu ombro antes. Na aula seguinte, quando propus uma atividade, ele foi o primeiro a se voluntariar para ir ao quadro. Gostou! Ganhei o garoto, que se tornou um dos meus mais empolgados estudantes, ainda que outros professores continuassem a falar mal dele.

Às vezes, a gente só tem que perceber que aquela criatura ali na sala de aula não é um aluno. É gente. E gente tem história, gente sofre, gente chora... mas gente também ri e ama. E se ri e ama, às vezes um toque no ombro é tudo o que se precisa para se chegar ao seu coração.


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