sábado, 26 de setembro de 2015

Minha vida em quadrinhos

Éramos umas cinquenta pessoas numa sala da UFRGS. O objetivo ali era conversar sobre histórias em quadrinhos... ou, para ser mais elegante e contemporâneo, narrativas gráficas. Mais especificamente, Watchmen, fenômeno dos quadrinhos mundiais, que mudou o conceito da HQ de heróis no mundo, mostrando personagens extremamente humanos e falíveis por trás das máscaras e roupas espalhafatosas.

Não pesquiso quadrinhos. Sou muito mais fã e leitor do que um pesquisador, mas como a proposta era uma conversa de fã para fã, topei o desafio lançado pelo amigo e professor Demétrio Alves Paz. Junto comigo, para conversar sobre os "vigilantes", o advogado e escritor Gustavo Melo Czekster, fã como eu.

A tarde foi divertidíssima. Parece que todo mundo que estava lá saiu satisfeito. E pela primeira vez em muito tempo participei de um evento acadêmico em que a plateia tinha muito o que falar. Foi ótimo! No lugar do silêncio respeitoso - quase temeroso - ou das perguntas meramente protocolares para preencher os silêncios, a discussão se prolongou por cerca de uma hora após a fala dos dois palestrantes. Só não foi além porque o horário não permitiu, pois havia fôlego para mais algumas horas de conversa. Aprendi muito!

Para quem não leu a obra, é importante saber que mais que quadrinhos, Watchmen é um mundo de referências: trata da Guerra Fria, discute as consequências da era nuclear, expõe a alma humana em seus aspectos mais sublimes e mais obscuros. Seu autor, Alan Moore, é um mestre. Um escritor que, como poucos, mesmo se considerarmos aqueles aceitos como "literatura de verdade", sabe urdir tramas extremamente complexas e significativas. Gostas de discutir religião e religiosidade? É um prato cheio. Ética e moralidade? Presentes! Lês Kant, Platão, Nietzsche ou Maquiavel? Lá estão. A riqueza da obra é tal que se em mais de três horas não conseguimos dar conta de discutir, não será neste curto espaço que irei fazê-lo. Sugiro a leitura da dissertação "Quis evaluates ipsos Watchmen? - Watchmen and narrative theory", defendida no ano passado na mesma UFRGS por Leonardo Vidal, a quem, gratamente, conheci no evento.

Meu objetivo aqui, porém, não é enaltecer Moore, sujeito genial, mas excêntrico, cujas opiniões, muitas vezes, parecem-me extremas. O que quero aqui é falar de quão importantes podem ser os quadrinhos na formação do leitor.

Para o encontro em Porto Alegre, fiz um exercício de memória sobre minha própria formação e me dei conta de que uma de minhas primeiras memórias "literárias" é de meu pai lendo o Incrível Hulk para mim. Minha mãe também lia muito para mim, mas não tenho dúvidas de que os quadrinhos foram minha porta de entrada na literatura. Depois de muita revista da Disney e  do Recruta Zero, algumas das leituras preferidas do meu pai que me "contaminaram", comecei, ainda pequeno, lendo os clássicos do Monteiro Lobato (hoje também tão criticado por alguns).

Na pequena escola municipal em que estudei até a quarta série não havia biblioteca. Só me deparei com uma quando fui, na quinta série, para o saudoso Instituto Assis Brasil, no centro de Pelotas. Ao entrar na biblioteca, tive a nítida sensação de que meus olhos saltaram das órbitas e de que meu maxilar desencaixou e foi ao chão. Devorei tudo! Era o melhor amigo das bibliotecárias e fazia concorrência comigo mesmo, de ano para ano, para ver se conseguia ler mais livros que no ano anterior.

Para chegar nesse estágio, porém, a verdade é que o leitor já estava formado. Formado pela leitura de quadrinhos. Sobretudo, quadrinhos de heróis, dos quais me tornei efetivamente fã e colecionador em julho de 1983, quando meu pai levou para casa a revista Superaventuras Marvel número 13, com uma história clássica do Demolidor e da Elektra escrita pelo também genial Frank Miller. Nunca mais parei.

Se hoje leio com prazer aqueles que são considerados os grandes nomes nacionais e internacionais da literatura é porque um dia uma HQ caiu nas minhas mãos. Não tenho dúvidas disso. "Ler" rima com "prazer". É claro que, com o tempo, meu prazer fica mais e mais sofisticado.

No que diz respeito à leitura,  isso significa que preciso partir de algo que realmente me agrade, que desperte em mim um sentimento, que me desperte o prazer, seja uma HQ, seja Júlia ou Sabrina... seja o que for. Para Pennac, não há prazer maior do que ver o leitor "bater sozinho à porta da fábrica best-seller para subir e respirar na casa do amigo Balzac"*.

Meu prazer ficou bem mais sofisticado hoje... mas isso não significa que eu precise abandonar meus velhos prazeres. Estou em paz comigo mesmo.


* PENNAC, Daniel. Como um Romance. Porto Alegre: L&PM, 2011.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Navegar é preciso...

Como não raro acontece, o rapaz parece totalmente hipnotizado pela tela do computador, que muda com uma rapidez impressionante de um texto para outro, para outro, para outro. O professor, desconfiado, aproxima-se. "Como diabos ele consegue pesquisar desse jeito?" Mas é fato... várias abas abertas, quase todas com conteúdo pertinente, à primeira vista. Parece que a pesquisa está saindo mesmo!

- Marcinho - chama o professor.

O rapaz continua ali, impassível, olhos vidrados: localiza link, abre nova aba, verifica o texto, mantém ou fecha a aba segundo seu interesse, volta para o Google.

- Ô, Marcinho! Acorda pra vida, guri!

Nesse instante, o Marcinho parece sair do transe. Meio aturdido, olha para o professor, pisca e lança a pérola:

- Navegar é preciso, viver não é preciso...

Caramba! Fernando Pessoa numa hora dessas! O professor ri e deixa o Marcinho em paz. Na outra aula, o estudante apresentaria o resultado de sua pesquisa: uma apresentação impressionante em Prezi com dois mashups de vídeo mostrando um pouco da vida e da obra de João Simões Lopes Neto.

O Marcinho é um adolescente normal. Adora o Youtube, está sempre conectado no Facebook e no Instagram, não perde a oportunidade de postar no Twitter e o WhatsApp é um amigo inseparável. Quando está estudando, em geral não perde de vista o celular, mantém o computador ligado e escuta música. Tudo ao mesmo tempo. É um Homo zappiens, um nativo digital.

Tudo isso, porém, não credencia o Marcinho a criar aquela apresentação brilhante. Ele tem um diferencial: todos os dias, faz questão de se desconectar por uma ou duas horas para ler um livro. Lê de tudo, desde autoajuda até Dostoiévski. É um devorador, muito graças à influência de seus pais.

Por gostar de literatura, pesquisar e fazer a apresentação foi fácil para ele. Para outros, a coisa foi beeeem mais complicada. Vindos de famílias que não têm o hábito da leitura e ao aprenderem, na escola, que ir para a biblioteca é castigo quando a gente se comporta mal, esses alunos desenvolveram uma barreira afetiva ao ato de ler.

O resultado disso se vê no último PISA: os estudantes brasileiros de 15 anos ficaram na antepenúltima posição de um ranking de 31 países que avalia a capacidade de ler e navegar na internet. Compreensível: se não tenho o hábito de ler, mudar a plataforma para um meio digital, mais colorido e interativo, não vai mudar muito minha capacidade de compreensão.

Não sou fã de testagens como as do PISA. Toda testagem é o retrato de um único momento, com toda a sua tensão e complicações daí decorrentes.  É algo que jamais consegue medir com exatidão o conhecimento de um estudante. Ainda assim, acende um sinal amarelo que precisa nos levar a alguma reflexão. Não é ignorando o teste que as coisas vão melhorar.

O fato é que pesquisas comprovam que o Homo zappiens tem algumas habilidades inatas para lidar com tecnologias digitais. O peixe nasce na água e nadar é apenas natural para ele. Por outro lado, o HZ precisa de um norte para aproveitar adequadamente essas tecnologias em prol de sua formação e dar esse norte é papel do professor. A tecnologia é só um meio, uma ferramenta. A tecnologia não faz mágica, mas o professor... ah, esse sim é capaz de muita mágica.

Aprendizagem significativa e colaborativa; fuga dos conteúdos fixos e enfadonhos; trabalho com pesquisas e projetos que tenham sentido na vida dos alunos; uso de muita tecnologia digital e uso de todo tipo de tecnologia (o livro é uma delas, uma garrafa pet também); acima de tudo, fazer da escola um espaço em que o aluno se sinta bem, um lugar em que ele goste de estar (o que fará com que o professor compartilhe desse bem-estar). Isso, provam-no experiências em vários países, inclusive no nosso, pode mudar radicalmente o quadro doloroso da Educação.

Para chegarmos aí em nosso querido Brasil, navegar é preciso... temos muito a navegar, mas toda viagem começa com a primeira remada: eu com meus alunos na minha escola.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

De cumple

Uma criançada faceira em volta da mesa na casa da vó Freda. Sandro, Dudu, Regina, as primas gêmeas e mais uma meia dúzia. Garrafinhas de vidro de Coca-Cola cobertas com um tipo de invólucro de cartão com personagens da Disney. Um enorme bolo coberto de glacê branco com uma velinha azul em cima representando um único número: 3. Meu aniversário.

Por incrível que possa parecer, esse é o aniversário que eu me lembro com mais nitidez. Na verdade, não sei bem se me lembro ou se as fotos tão bem guardadas pela minha mãe e que já olhei incontáveis vezes nesses 42 anos é que me fazem recordar. Uma pitada de memória emocional misturada com muito memória imagética inventada para preencher as lacunas.

Acho que esse aniversário me marcou tanto porque depois disso nunca mais dei muita importância para isso. Sempre tive a convicção de que os anos passam e pronto,  não há muito para comemorar. Para meu pai, por exemplo, não se trata de mais um ano, mas de menos um ano de vida. Uma atitude bem fatalista, mas compartilhada por muita gente.

No 4 de setembro que passou, entretanto, me senti diferente. Dizem que gente velha fica sentimental e chorona. Talvez seja isso. Mas gostei desse meu aniversário de 2015.

Gostei de receber telefonemas da minha companheira de vida, trabalhando em outra cidade no dia, dando pistas de onde encontrar meus presentes escondidos pela casa. Fiquei feliz porque ela não esperou o sábado de manhã para voltar para casa e que, apesar do cansaço, fez questão de vir depois das suas aulas na sexta para chegar de madrugada em casa, em tempo para me dar os parabéns pessoalmente, afinal, antes de a gente dormir, mesmo que tenha passado da meia-noite, ainda vale.

Deixou-me contente a acolhida dos colegas na sexta à tarde. Passei-a inteirinha em reunião, mas os colegas se encarregaram de comprar um lanchinho e docinhos para confraternizar. Tive direito até a bolo com o logo do Batman, minha personagem preferida das histórias em quadrinhos.

Alegrou-me sair da reunião e receber os parabéns de uma aluna que já estava no fim do corredor e deu volta só para me desejar felicidade e pedir que eu continuasse sendo esse professor bacana, que, segundo alguns alunos, eu sou. Aliás, recebi homenagens lindíssimas tanto pessoalmente quanto pelas redes sociais de meus alunos de perto e de longe. Não só dos alunos, mas de tantos amigos que fiz ao longo de todos esses anos.

Valeu a conversa com minha irmã, mesmo que por telefone. A ligação do meu velho, ainda que meio ranzinza. A comemoração com a família da minha companheira, que agora é minha família também (ah, por incrível que pareça, tinha bolo do Batman também em casa!). Como me disse ela, minha companheira, foi tanta comemoração que mais pareceu uma festa cigana.

Gostei! Acho que vou acabar virando fã dos meus aniversários, não pela data em si, mas simplesmente porque é bom sentir-se querido.

Obrigado, gente! Vocês me deixaram muito feliz!