quinta-feira, 1 de maio de 2014

Educação e artesania

No último 29 de abril tive a felicidade de ser uma das cerca de quinhentas pessoas que assistiram à fala do educador português José Pacheco, conhecido popularmente como Zé da Ponte, por sua experiência de uma escola nada convencional em Portugal, uma escola sem salas de aula e sem ensino seriado, a Escola da Ponte. Trata-se de um projeto tão interessante que acabou sendo replicado em vários lugares, no Brasil inclusive.

Hoje, Pacheco trabalha como voluntário no Projeto Âncora, na periferia de Cotia, no interior de São Paulo, onde escola e comunidade desenvolvem, em comunhão e harmonia, como tem que ser, um esforço educativo para aprender e melhorar as condições locais. Todo mundo trabalha junto. As crianças desenvolvem projetos, sempre dentro de seus próprios interesses, em que, além de aprender naturalmente o que o currículo obrigatório exige, ajudam a tornar o espaço que habitam um lugar melhor para se viver. Os adultos se envolvem junto. São voluntários. Mesmo quem não sabe ler e escrever tem espaço para ajudar os menores com suas experiências de vida. Em troca, são apresentados às letras. Aqueles que querem, claro.

Pacheco contou tantas histórias e todas são tão comoventes e interessantes, que fica difícil selecionar uma só para compartilhar. Mas quero comentar de uma que me parece caracterizar bem um dos grandes problemas da escola de hoje.

Já há vários anos, Pacheco recebeu em sua escola um grupo de adolescentes vindos de uma casa para menores infratores. Eles vinham acompanhados de assistente social, psicóloga e dois policias com suas respectivas armas em punho, claro. Gurizada perigosa! Prostituição, tráfico e até homicídio estavam entre os crimes cometidos. A assistente declamou toda a lista de delitos dos guris. "O senhor quer ficar com eles? Ninguém mais aceitou." "Fico." A assistente social, meio incrédula: "O senhor tem certeza?" "Ora, se eu disse que fico, fico." Um dos policiais, claro, se prontificou a ficar por ali. O fuzil podia ser necessário. Não, não era preciso, respondeu o Zé.

Depois que as autoridades foram embora, Pacheco convidou os guris a sentar. "Que vocês querem me perguntar?" Eles se olharam. Possivelmente esperavam um sermão, reprimendas ou ameaças. Quando menos, um discurso pedagógico. A pergunta os deixou mudos, até que um se atreveu. "Eu tenho uns passarinhos lá na casa, sabe, mas me disseram que estão sujando tudo e que assim não dá. Vão botar eles fora. Posso trazer para cá?" "Pode." "Posso?" "Sim... mas aqui não tem lugar direito para eles. Vocês vão ter que dar um jeito de construir um lugar para que eles fiquem." "Eu já construí um viveiro uma vez.", disse outro. "Ótimo! Então vamos montar um projeto!" "Projeto?" "Isso mesmo! Peguem papel e caneta. Anotem aí: projeto. Certo. Agora escrevam: objetivo. Coloquem dois pontos e ponham que o objetivo de vocês é construir um viveiro. Pois bem, vocês sabem calcular área? Não? Então anotem aí: aprender a calcular área..." E assim foi. Os guris, marginais superperigosos, segundo a visão geral, saíram de lá com um objetivo concreto, uma perspectiva de vida, pelo menos para os próximos dias, e um projeto que envolvia cerca de quarenta temas do currículo do ensino básico.

Nos dias que se sucederam, eles aprenderam a calcular área, reciclar materiais e muito mais. Construíram o viveiro. Levaram os pássaros. No nono dia estava tudo pronto. Após a assembléia semanal dos alunos, todos os que tinham interesse em aprender sobre viveiros, espécies de pássaros e cálculos para construção se reuniram para ouvir a explanação dos guris detentos. Empolgados, eles fizeram uma exposição e responderam a perguntas, ensinando o que sabiam a seus pares durante cerca de hora e meia, enquanto os professores, quietinhos para não atrapalhar, iam avaliando o domínio deles dos conteúdos estudados.

Hoje, o mais velho desses guris sem futuro tem 56 anos e é dono de três empresas de construção.

Pois é, essa escola e esses professores conseguiram mudar a vida dessas crianças, que, antes, nunca tinham tido oportunidades. Se aprendêssemos a ouvir mais os nossos alunos, talvez as coisas fossem diferentes do que é hoje na educação. Infelizmente, escola, hoje, é linha de montagem fordista. Os alunos precisam ficar estáticos na esteira que é a sala de aula. Vão passando de mão em mão, de professor para professor. Ninguém os escuta, porque eles são só peças, coisas mecânicas que devem responder mecanicamente. A muitos professores só interessa colocar um parafuso aqui, um retentor ali, um vedante acolá. Cumprir currículo, de tal modo que todo mundo aprenda a mesma coisa ao mesmo tempo, o que é impossível, para não dizer ridículo.

O pior de tudo é que nossas leis são muito bonitas no papel. Autonomia, pesquisa, etc. Como disse o próprio Pacheco: por aqui, enaltecem o sistema finlandês de ensino, mas esquecem que a Finlândia praticamente eliminou a prova como elemento avaliativo, enquanto no Brasil, parece que a cada ano surgem mais provas. Com isso, nem mesmo quem quer fazer diferente, quem quer humanizar a educação, encontra apoio legal ou institucional. É difícil! Mas vamos lá... já deu para ver que não é impossível. Educação não pode ser linha de montagem. Educação é trabalho artesanal.

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