sábado, 15 de agosto de 2015

Cuidado! Cursar Letras pode afetar tua vida!

O guri cresceu na roça. Lá numa cidadezinha no interiorzão do Rio Grande do Sul. Os pais dele fizeram questão que ele fosse à escola, aprendesse as letras e os números. Ele gostou da coisa e não quis ficar por ali. Cresceu e queria continuar estudando. Mas como? Guri da roça fazer faculdade? Larga de ser bobo! Além disso, a universidade mais próxima fica a mais de trezentos quilômetros de distância. Impossível! 

De repente, porém, numa madrugada qualquer antes de ir ajudar o pai no campo, deu uma notícia no rádio que fez seus olhos brilharem: a prefeitura estava abrindo um polo de Educação a Distância na cidade. São três cursos, um deles é Letras Espanhol. O guri, agora um moço, sempre gostou mais de ler e escrever do que de calcular. Questão de gosto mesmo. Mas nunca tinha estudado espanhol. Uma vez tinha ouvido o seu Antônio da venda tentar se comunicar com um argentino que passara meio que por acidente pela cidade e o avô, às vezes, escutava uns tangos na vitrola antiga. Gostava da sonoridade daquela língua, mas daí a virar professor... 

A mãe se apaixonou pela ideia: "Meu filho, professor?" O pai apoiou: "A gente dá um jeito!" E lá se foi o moço fazer a inscrição para o vestibular.

Passou. Cursou. Aprendeu muito. Encontrou professores de todo tipo no seu curso. Os chatos, os indiferentes... mas sobretudo, deu-se conta de que, apesar da distância, a maioria dos seus professores ensinava com carinho. Eram exigentes, sim, porque ser carinhoso não significa ser indulgente, mas transmitiam com suas palavras aquilo que o toque era incapaz de fazer, devido a distância.

O moço se formou. Hoje ele é professor em uma escola do campo e ensina espanhol com o mesmo carinho para seus alunos da pequena localidade. Por que alunos de uma zona rural precisam aprender espanhol? Porque aprender uma língua estrangeira é conhecer outros mundos, outros pontos de vista, outras culturas. Aprender uma língua estrangeira faz com que eu consiga enxergar o outro e aprender a respeitá-lo. Um dia eu posso usá-la... ou não... mas a aprendizagem que está por trás da língua vai me tornar um ser humano mais completo. 

O espanhol fez diferença para o moço da roça e vai fazer diferença para seus alunos.

Bom, tenho que confessar que esta não é UMA história real. É, sim, um amálgama de várias histórias reais de vários dos meus alunos da EaD. A formação como professor de espanhol faz diferença pelo menos para a maioria deles. E o trabalho que eles fazem em suas escolas depois também é importante para as crianças e adolescentes com quem eles trabalham. Não se trata meramente de ensinar e aprender uma língua. Trata-se de ensinar e aprender a ver o mundo com outros olhos, ensinar e aprender a olhar para além do próprio umbigo.

Conto isso porque no meu período "sabático" de escrita de tese, quando não tinha tempo nem de respirar quanto mais de escrever algo que não fosse a própria tese, anotei a insólita frase do jornalista Alexandre Garcia, famoso por se achar um paladino da educação e não raro cometer heresias imperdoáveis. Dizia ele, a respeito da qualidade discutível dos cursos de medicina no Brasil: "Um curso de medicina não é um curso de letras neolatinas; é algo que vai afetar a vida das pessoas."

Pois é, seu Alexandre, tenho certeza que o senhor não se ouviu quando disse isso. Não vou discutir aqui a qualidade dos cursos em geral ou da educação, mas uma coisa posso dizer: cursar Letras Neolatinas teria afetado sua vida. Talvez, tivesse se tornado uma pessoa menos preconceituosa. Quem sabe, né? A minha vida foi afetada. A de muita gente que conheço, também. 

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